terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Tapete velho

Bateu finalmente na porta que encarou por uns bons oito ou dez minutos. Aguardou estático, prendendo a respiração involuntariamente até ouvir os passos lá de dentro. Soltou os braços, tentando relaxar sem sucesso e bocejou em nervosismo. A porta se abriu e um rosto surgiu da escuridão de lá de dentro, iluminado pela ponta de um charuto pela metade. Olhou fundo nos olhos daquele atendente e deixou claro que estava com medo, a ponto de sentir um pontada nas entranhas, lhe traindo os sentidos. A porta se abriu por completo e o homem que atendera apontou a direção, mudo e seco. Sentiu a ponta do nariz congelar e quase teve que comer o ar para respirar. Entrou.

-Eles estão...

O homem o encarou em repressão como quem dissesse: "o senhor não está em posição de dizer nada neste lugar". Apontou novamente a direção, impaciente. O outro conscentiu com a cabeça, olhou para o caminho indicado e sentiu um frio tenebroso na espinha. Tinha um mau pressentimento, mas não havia mais como voltar atrás. Aprumou o corpo, respirou fundo e tomou coragem. Balbuciou qualquer coisa, bufou e seguiu em frente com a cabeça erguida. Se aquele era o seu destino então que honrasse aquele momento. Era o que o mundo queria dele, apesar de não ser o que ele queria do mundo. No entanto era um homem conformado e continuou andando, como se seguisse ordens de uma força maior por não ter forças por si mesmo para o que vinha adiante.

Depois de alguns passos, viu a luz que saia pelas frestas da porta ao final do corredor. Uma porta velha e fúnebre, com desenhos recortados a mão por algum marceneiro de bom gosto artístico, o que tornava o momento ainda mais difícil. Encarou a porta por alguns minutos, como fez com a primeira. Devia ter algum trauma de portas. Ergueu a cabeça que já tendia ao chão novamente e bateu com vigor os nós dos dedos na cara de um diabinho entalhado na porta. Não parecia ter dó, mas provavelmente o que doía mesmo eram os dedos, muito mais do que a porta. Do outro lado ouvia-se risadas que cessaram com as batidas. Um silêncio quase cortante tomou conta do lugar, suspendendo a respiração e permitindo quase ouvir as batidas do coração do pobre coitado. A porta se abriu.

Naquela noite, eu era o homem que atendeu a porta. O outro era mais um pobre coitado que vinha vender sua alma a troco de dinheiro fácil ou felicidade. A mão que o puxou pela gola, pra dentro do quarto protegido pela porta velha era meu chefe. Um bixeiro ambicioso e de caráter altamente duvidoso em quem as pessoas insistiam em confiar. Era um safado de escala maior que enganava os que já não tinham nada buscando escravos a seu serviço. O pobre coitado, que entrou naquela casa fedendo, ganhou roupas novas e uma arma. Dias depois foi preso por matar um endividado nos jogos. Matou a mando do chefe e a troco de alguns reais que mal davam pra comprar o butijão de gás, motivo primeiro que o levou a procurar o bixeiro. Os filhos passavam fome. Meu chefe comia uma coxa suculenta de frango quando viu o pobre homem na televisão, algemado e maltratado pela polícia. Riu amargamente, em sinal de desdém.

-Esses idiotas não servem pra nada! Ofereçam a ele um chá de sumiço na cadeia como cortesia da casa, antes que ele solte a língua por lá e coloque os meus negócios em risco.

O capangas obedeceram e foram imediatamente cumprir com a tarefa, sem questionar. Medo de morrer provavelmente.

-E você. - dirigiu-se a mim - Encontre o filho deste homem e o traga aqui. Tenho planos pra ele. Se tiver uma filha também... - sorriu maliciosamente - Tenho planos melhores ainda. - terminou rindo de forma sádica.

Depois disso me lembro de pouca coisa. Quando dei por mim, estava com a arma em punho, apontando para o peito gordo daquele bixeiro, respirando com dificuldade por conta do nervosismo. Antes que pudesse puxar o gatilho, ouvi um barulho ensurdecedor atrás de mim e em seguinda o sangue quente me escorrendo das entranhas. Tomei um tiro no lado direito das costas, justamente o lado que segurava a arma. Durante a queda arrisquei um tiro torto. O homem era grande demais, não havia como errar. Errei. Já no chão, tomei mais dois tiros, por garantia, e morri ali, no tapete falsificado imitando persa. Me enrolaram nele mesmo e me jogaram em um rio qualquer, onde despachavam os mortos endividados. Meus restos foram comidos pelos peixes, restando apenas o tapete falsificado. Tão falso quanto a minha vida inteira e agora tão podre quanto eu já fui um dia.

Não sei o porque fiz aquilo. Estava acostumado com as ordens daquele gordo escroto. O que importa é que fiz e acabei morto. Porém, agora, sinto que um pouco de caráter me voltou ao espírito. O mínimo que seja. E pensando bem, deixei aquele mundo sem nunca ter matado ninguém, apesar de ter sido cúmplice de muitas mortes. Deixei aquele mundo sem família ou filhos. Não deixei nada de mim para trás. Nada além de trapos e aquela mancha de sangue no tapete velho.