sexta-feira, 12 de outubro de 2018

Trezentos Milissegundos

O zunido passou tão perto do meu ouvido que minha única reação foi apreciar sua bela melodia a me dizer que estava tudo bem, que só passou para me acordar. Acordou, de fato. Abri os olhos tomando uma golfada de ar que me expandiu os sentidos e reconstruiu minha vida em um segundo. Menos do que isso na verdade, dizem que o cérebro leva até trezentos milissegundos para processar uma informação. Uma bala na cabeça você só descobre que tomou quando chegar lá em cima - ou lá embaixo - e perguntar o que está acontecendo. Se não houver isso de céu ou inferno você vai viver eternamente naquele último momento, último pensamento, antes do balaço atravessar seus miolos e se alojar em alguma parte do seu crânio. É assim, sua vida não foi interrompida, não deu para apertar o Stop, foi Pause, para sempre. 

Uma explosão ao longe me trouxe de volta. Não o clarão, mas o som, que demora bem mais para chegar, e a pancada no peito. Me joguei no chão junto com todos os outros do lado de cá, do lado que claramente está perdendo. É tiro, porrada e bomba para o nosso lado, gritos, pedras e molotov para o lado deles. Eu quase não acredito no que estou vivendo, nada faz sentido. Sabe quando você fala demais uma palavra e ela simplesmente perde o sentido na sua cabeça, como se não fizesse ligação com nada? Mais ou menos isso, só que com a vida, o espaço-tempo em que eu estava vivendo. Não foi fácil retomar a linha de raciocínio, não foi fácil levantar na multidão para correr para algum lado sem nem lembrar de que lado eu estava. No primeiro passo porém, meu joelho parecia explodir e caí no chão novamente. Parece que foi aí que as coisas voltaram a fazer sentido, ou melhor, sentido não fez, nem nunca vai fazer, mas consegui ordenar as sinapses e reconectar os fios na cabeça até o começo de tudo, assim, talvez em trezentos milissegundos. 

Aliás, uma pessoa que toma uma bala na cabeça e não morre, tem grandes chances de morrer nos trinta dias que se seguirem ao evento e, se não morrer, provavelmente viverá o resto da vida com sequelas. Ainda assim é mais comum o uso de coletes a prova de bala do que capacetes, porque a área do tronco é maior, mais fácil de acertar, mesmo que haja maiores chances de sobreviver dependendo de onde o tiro acertar. Talvez se alguém colocar na ponta do lápis e calcular probabilidades, verá que de um lado a chance de acertar a cabeça é menor, mas o risco de morrer é maior e, no resto do corpo, vale a lógica inversa. Quem será que ganha? 

Pensando nisso, em quem será que ganha, meu cérebro deu um tranco e acelerou até o começo dessa história. A única palavra que me veio como resposta ao que vi e vivi nos últimos cinco anos foi: patético. O passado é patético e o futuro... não há.

sexta-feira, 5 de outubro de 2018

Podres Poderes

Os três poderes apodrecem nos planaltos. Padecem de programas e propostas, perpetuam pífios planos de parlamentares patéticos. Pobres e podres de rico pedem mudanças, para si mesmos e seus pares. Despreparo proporcional ao preconceito, ou vice e versa. Prevalece o excesso de palavrões e preconceitos. Um pouco de protesto da oposição. Parece o passado de novo. Padece o futuro do povo. Prova-se o problema. Segurança pública se resolve com porte de armas. Pow pow pow, parte o coração, do bandido podre, preto e pobre. Planta o pilar do pragmatismo político. Prático e patriótico. Povoa o plenário. Passeia nos parques, armado, preparado para o ataque, ou a defesa pessoal. Coldre pesado. Ponto trinta e oito. Permitido. Primitivo. Parece que o pensar é o único ato proibido.

segunda-feira, 26 de junho de 2017

Marcas de Expressão

Exercício de criatividade um. Começa-se sem idéias. Continua sem elas. Persiste. Nada. Solta o lápis e estica as pernas. Pega o lápis de novo. Repassa a sequencia de ações que acabou de suceder. Passa para o papel, ou melhor, transforma em pixels. Sem luz não há escrita, literalmente. Lembro que preciso pagar as contas. As outras, a de luz está paga. Débito automático, como esse que viemos pagar nessa encarnação. Mecanicamente programado para pagar, trabalhar, amar, morrer, voltar ao plano superior, dar corda, descer de novo e por aí vai. Dessa vez como homem. Amanhã como mulher. Depois, bananas. 

Não te revolta que os dias um dia acabem para sempre e você não sabe o que vem depois? Se tudo o que te contaram é verdade ou só mais um motivo pra você seguir sem questionar? A sociedade é o irmão mais velho que inventa coisas só pra você ficar quieto. 

Às vezes eu desligava o controle da minha irmã do vídeo game e deixava ela apertando os botões para acreditar que ela estava jogando. Hoje a vida faz isso comigo, mas hey, o importante é participar, apertar os botões falsos como se fossem importantes. Acordar cedo todos os dias e ir trabalhar acreditando na construção de uma sociedade melhor que só está ficando pior. Se você parar pra pensar vai ver que tudo está indo para o buraco, menos o seu sorriso de bom dia às sete da manhã. Isso aí é coisa de ator profissional, daqueles do teatro Nô que morreriam se perdessem uma deixa. Você e sua máscara de amplificar caráter. 

Você pensa nessas coisas? Eu venho pensando enquanto visto a minha cara de segunda-feira. A cara de sexta é melhorzinha, tem menos marcas de expressão. Não sei se foi se tornando pouco expressiva ao longo da semana ou se a pressão diminuiu mesmo. Um pouco dos dois, o mundo que me molda e eu que me moldo no mundo, ou ao mundo, o que dá no mesmo que a primeira afirmação. Faz diferença? Parece que não.

sexta-feira, 23 de junho de 2017

Em Tempo

                - E então, qual é o sentido disso?
                - Depende, o que é isso a princípio?
                - Não sei, mas não depende de mim o que possa ser.
                - Ou depende e você não quer aceitar.
                - Recuso-me.
                - Pois prossiga sem compreender, se isso te faz bem.
                - Me mata por dentro, mas não quero crer que se eu aceitar entenderei.
                - Nada garante.
                - Nem impede.
                - Concordo, é preciso tentar.
                - Empírico.
                - Experimento auto-social.
                - E se não der certo?
                - Já não está certo, há de piorar?
                - Tem razão, não piora.
                - Mas também não sai de onde está.
                - Melhor assim.
                - Melhor seria se fosse diferente.
                - Ou pior.
                - Há de piorar?
                - Deixa pra lá.
                - Pra depois ou para sempre?
                - Pra outro.
                - Ou outra.
                - Preciso me retirar, você vem?
                - Não.
                - E pra onde vai?
                - Espero você voltar.
                - Está frio.
                - Eu me aqueço, e você?
                - O vento me acalma.
                - Parado não há vento.
                - Movimento é mudança.
                - Mudar é bom.
                - O bom é conhecido.
                - Desconheço.
                - Agora eu me vou.
                - Não se vá, encontre-se.
                - Sem saber aonde estou?
                - Sabendo ou não.
                - E como saber?
                - Deixa que eu aponto.
                - E se estiver errada?
                - Pergunto eu, e se?
                - Mal não há de fazer.
                - Nem pode ser pior.
                - Então devo ficar?
                - Se for o melhor.
                - Não há como saber.
                - Basta decidir.
                - E depois?
                - O depois dirá.
                - O futuro é mudo.
                - O futuro é o mundo.
                - Mundo pequeno.
                - Mundo cão.
                - Para onde então?
                - Por aqui mesmo.
                - E você?
                - Me dê a sua mão.
                - Não me pertence.
                - Será minha então.
                - Tanto faz.
                - Não serei dona.
                - O que será?
                - Outra mão apenas.
                - Tenho duas.
                - Não tens nenhuma, esqueceu?
                - Está certo.
                - Agora são três.
                - Mãos do mundo.
                - De ninguém.
                - E de todos.
                - Agora sim.
                - O quê?
                - Você sorriu.
                - Não me pertence.
                - Mas se aproprie.
                - Posso?
                - Não.
                - Então?
                - Deve.
                - Me obrigue.
                - Agora!
                - Está bem.
                - Viu.
                - Não posso olhar.
                - Não te pertencem os olhos também.
                - Exato.
                - Use os meus.
                - E você.
                - Não importa.
                - São belos.
                - O que vê?
                - Vejo-me.
                - És belo também.
                - São seus olhos.
                - São reflexos.
                - Espelhos.
                - E espelhos não mentem.
                - Mas se quebram.
                - Ainda assim.
                - Mal se pode ver.
                - Se juntar os pedaços.
                - E se faltar algum?
                - A gente inventa.
                - A gente?
                - Toda a gente.
                - Então você vem?
                - Vou depois.
                - Depois do que?
                - De você.
                - Não entendo.
                - Não há de entender.
                - Vou-me.
                - Lembre-se de mim.
                - De que me vale?
                - Só assim posso viver.
                - Pois se quiser me acompanhe.
                - Nos encontraremos de novo.
                - Quando?
                - Quando, é questão de tempo.
                - Não se aplica?
                - Não a nós.
                - Nem tempo nem espaço.
                - Vejo que agora entende.
                - Você ao menos existe?
                - Pergunte aos filósofos.
                - Não existem mais.
                - Então está respondido.
                - Bom, então, adeus.
                - Até logo.
                - Breve?
                - Em tempo.

quarta-feira, 21 de junho de 2017

Sobre mim

Esse blog é uma forte fonte de consulta quando eu quiser me lembrar de mim.

O Entorno de Saturno

A um bilhão de quilômetros da Terra, a humanidade mergulha entres os anéis de Saturno em uma curva de sessenta e três graus na primeira das vinte aproximações pretendidas para estudo da composição das majestosas circunferências planetárias que rodeiam aquele planeta. Aqui em casa, não sei como vou fazer para trabalhar doze horas do meu dia, entre a saída para o trabalho e o retorno, lavar a louça, a roupa, passar a roupa também, tomar banho, comer, dormir e ler algum livro ou fazer qualquer coisa que seja para mim. Em um plano bastante agressivo a sonda vai sofrer com as forças gravitacionais e ser impulsionada novamente para fora e se preparar para um novo mergulho, mais análises e fotografias cósmicas. Depois de jantar preciso agir rapidamente em direção ao que pretendo fazer durante a noite, se não o fizer, perco o resto do dia sentado no sofá sapeando por mídias digitais e viajando distâncias imaginárias para Dubai ou Ubatuba sem sair do sofá. O grupo que vai analisar os dados ficará um longo período no escuro, sem receber notícias da corajosa sonda até que ela esteja pronta para emitir novos sinais vitais aos seus tutores terrestres, tudo deve levar um ou dois dias, não sabemos ao certo. Não são raras as noites que passo de olhos abertos procurando respostas virtuais para perguntas imediatas e superficiais que surgiram apenas por eu estar procurando resposta para outras perguntas imediatas e superficiais, assim mergulho no cosmos de outras vidas pelas fotografias e dados expostos em seus universos particulares. Após cumprir sua missão de longos anos, Cassini ficará sem combustível e mergulhará uma última vez para o denso e obscuro mundo do desconhecido planeta Saturno com uma triunfal queima de componentes que entraram para o livro dos recordes como o primeiro show pirotécnico do planeta dos compromissos. Meu compromisso permanecerá mesmo que eu desapareça em pedaços em um particular show de fogos, artificiais e belos, enquanto aguardo no escuro a próxima ligação, mensagem ou sinal divino que me aproxime ou afaste de outro alguém. A humanidade colidirá com uma nova fronteira, demarcando assim com sua urina metálica territórios alheios, como sempre fez e continuará fazendo por direito assumido em leis terráqueas com validade universal indeterminada. Meu mundo colidirá com outro formando novas partículas de fortes ligações atômicas e será objeto de estudo para outros planetas em galáxias distantes e menos invasivos do que nós, seres humanos, de racionalidades duvidosas, enquanto uma chuva de meteoros ofuscará as lentes de um telescópio apontado de Saturno para cá, construído com os destroços de uma sonda decaída, feito um anjo que trouxe tecnologia do céu, aos seres do além mar, ou do além poeira cósmica, não sem antes ameaçar por vinte vezes colidir com a poeira estelar por ali encontrada. Espero que os estudos revelem a origem do meu ser, dos anéis que orbitam o meu planeta, das luas que seguem o rastro infinito desse nado em águas negras, desviando de buracos destruidores de planetas e enfim, as sondas se encontrem quando Saturno se alinhar ao signo de Cassini em uma epopeia de explosões universais. Como é belo e denso o universo e sua gravidade.

terça-feira, 7 de julho de 2015

Retalhos

Retrabalho hábitos envelhecidos
Descrevo contornos embriagados
Escolho peças de lados cortantes
Desvio os olhos da realidade
Em paraísos disfarço essa tristeza
Enroscada na garganta inflamada
Nos bicos dos seios já caídos
De uma grande mãe fragmentada
Descalço pés enlameados
Não os lavo antes de dormir
Encho o colchão de rua quente
Cubro sonhos de concreto armado
Sou pedra de chão mal colocada
Faço tropeçar pernas bambas
Porque escolho ser torto e largo
Mas que me errem os pés suaves
Não faço pouco de quem antes tenta
Nem largo o cheiro do pó do homem
Gosto mesmo é de pisadas fortes
Pisadas que trazem o gosto da morte