quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Espelho meu

Converso com alguém grudado na parede do meu banheiro. Eu sei que este alguém sou eu mesmo em meu pequeno espelho de parede com moldura laranja, desses que os velhos fazem a barba em filmes cults. Meu espelho no final sempre foi o único que me guiou até mim mesmo. A resposta pronta pra pergunta que rasga eras e destroça cabeças fracas com balas de trêsoitão: quem sou eu afinal? Concordo que o reflexo não é dos melhores, mas vale a reflexão. "O senhor tem um belo nariz, grande e batatudo. Os olhos mais pra lá do que pra cá e a boca... a boca é bonita, tem belos dentes, só poderia escová-los melhor, não acha?". Acho, mas a preguiça mata, dá tártaro na boca e no vão dos dedos, nas juntas, no joelho. Chamam de esporão o que não ta na boca (mesmo sendo outra coisa que não é tártaro), eu chamo de dor aguda, ou dor do caralho mesmo, pra resumir. O médico falou pra tomar cuidado ao me mexer. Não se preocupe doutor, não pretendo mudar minha vida de sedentário ativo pra desafiar meus ossos que se rebelam contra mim, apontando pra onde dói mais que é o lado de dentro. Me mantenho então quietinho mesmo, mais uma semana e outra, privando o mundo da minha beleza e de todo o meu talento para o nada. E mais um dia - hora - minuto se vão, outros copos de água suja e o peixinho sempre no aquário. Algum dia esse peixe acorda de ponta cabeça, ou eu, vai saber...

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Óculos escuros

Ela se deita na areia da praia esticando as pernas o máximo que pode, e os braços também. Espreguiça-se por que tem preguiça de todo o resto do mundo. Está de bikini e tem um belo corpo, com umas dobrinhas aqui e ali, mas um lindo corpo. É branca de doer os olhos, mas assim na areia parece um anjo - ou anja, pra não ser alvo de protestos - se deliciando com o banho de sol que mais tarde vai avermelhar sua pele e doer muito enquanto ela pensa "por que raios eu não fico morena?". É feita assim, pra ser branca e as vezes vermelha mesmo. Morena nunca, mas é de invejar a sua luta contra a natureza das cores. Tentei explicar certa vez que era coisa das melaninas, que eu tinha visto isso em alguma aula no colegial, mas ela insistia em se queimar e se lamentar da dor. Naquele dia, ela me olhou através dos óculos escuros e disse algo que eu não consigo me lembrar, porque estava pensando comigo mesmo "com olhos tão bonitos como os dela eu jamais usaria óculos escuros".

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Morfossintáxe

Escrever, verbo, infinitivo. Infinito em possibilidades. Ainda assim, tão simples, com a pequena intenção de registrar algo em papel ou, nesse caso, no computador, na nuvem, no céu escuro embaixo de alguma geleira. Palavra por palavra, registra-se, ou por um lado mais metafórico, registro-me. Combinações precárias de 26 letras ordenadas em grupos e galeras e multidões, formando assim um texto. Ou, abre aspas, um pretexto, fecha aspas. Colocar-se pra fora ou aprofundar-se olhando pra dentro de si. Ver o invisível que se perde no ar da fala e emudecer o som díspar das vozes dos homens, para dar lugar ao belo som de dentro de nós. - Aquela voz interior que lê os livros para você, sabe - . Voz de mãe e pai juntos, falando enquanto a mente sonolenta sorve o espesso caldo dessa sopa de letrinhas que chamamos de alfabeto. Escrever. Ato contínuo e viciante. Droga que expõe o imaginário ao mundo real e que, se acumulada por muito tempo, explode pra dentro causando febre e ansiedade. Dá falta de ar. 

Libertar-se enfim. Escrever é libertar-se. 

Como é limitado quem vive de dicionários.

quarta-feira, 5 de junho de 2013

Poema de gaveta

Nos teus braços
adormece a solidão
de nós

Dos abraços cansados,
do afago e do amor

Do gosto de vida suada,
do suor cheio de sal.

O sal do oceano.

Que banha o que resta
do que um dia
fomos nós

Sós,
apenas nós
sós.

sábado, 1 de junho de 2013

Cotidianas

Andando pelas ruas de dentro de casa eu me lembro das marcas de minha infância. Ruas por onde disputei sozinho grandes corridas de carros velozes e coloridos. Corridas que por vezes perdi e, por não aceitar a derrota, me convencia de que eu estava no outro carro, o vencedor. Nesta mesma casa, andei colado nas paredes fingindo ser um grande espião, invisível e mortal, cheio de artimanhas e instrumentos de espionagem moderna como os binóculos que eu fazia com minhas próprias mãos ou as luvas com ventosas que eu improvisava com meias velhas. Assim, eu espionava a casa, entrava nos quartos imperceptível e assustava a mocinha que trabalhava em casa. Anos depois eu entendi que ela se deixava assustar para me alegrar, mas disse também que as vezes se sentia vigiada sem saber se eu estava realmente por perto.

A moça era bonita em minha memória, mas realmente feia nas fotografias. Eu, mais do que todos na casa, convivia com ela diariamente e acompanhava com minhas brincadeiras os serviços domésticos que ela executava com maestria. Mesmo assim, minha mãe ainda reclamava de um copo mal lavado ou um móvel empoeirado. Ela seguia então limpando e eu observando os novos cheiros da casa limpa.

Os anos se passaram e ela também passou, lavou, cozinhou e se dedicou a cada centímetro daquela casa. Cada dia mais cansada e eu cada dia mais distante. Passaram-se as férias e eu pouco tempo tinha para espionar os serviços domésticos. Mudamos de casa e ela continuou conosco. Tive que partir para abraçar o mundo enquanto ela continuava abraçando as almofadas para tirar o pó do sofá. Aos poucos, ela dentro de casa se tornou o silêncio que eu tanto gostava de ouvir. A casa se limpando sozinha, trocando de pele, de cheiros e gostos. Minha cama sempre posta para os dias de visita e a mesa sempre farta em noites frias. Ela, silenciosa, preencheu os vazios da vida cotidiana.

Hoje, quando limpo minha própria casa, sinto que é ela  quem me observa, analisando se aprendi direito tudo o que me ensinou enquanto eu brincava. E assim eu retiro o pó dos cantos da casa. Lavo-me e passo-me enquanto lavo e passo as minhas roupas. Termino o dia limpo, com apenas um pensamento fora do lugar. Gostaria de me lembrar do nome dela.

domingo, 7 de abril de 2013

Fragmentos

Penso o passo em um lampejo
E realizo os tons em notas de realejo
Lendo Álvaro de Campos eu vejo
O poema que sempre desejo,
Escrever para a morte antes do beijo

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Escrevo assim pra me entender
Escrevo para mim, para sobreviver
Sebrescrevendo o que quero dizer
Em letras que possam adormecer
No coração de quem quiser ler
E talvez, contrário a mim, me esclarecer

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No cigarro, a fumaça do passado amarga o instante
Na bebida, o gosto do amado tão distante
E na razão boba de quem arruma os sonhos na estante
Esperando dividi-los com seu amante
A certeza de que o caminho restante
Trará de volta a paz e o amor de antes

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Outro trago, outro gole e outro pensamento
Voltando-se mais uma vez para dentro
Para onde nasce o tédio e o contentamento
E a certeza de amar o belo e o sem talento
Cala o medo do sofrimento
Devolvendo à boca o sorriso lento

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Como deste amor com a boca rasgada
E os pedaços do teu sorriso remonto de madrugada
Me olhando no espelho de cara borrada
Encarando todos os defeitos de uma vida passada
Apago a luz então cansada
E me deito, sozinha,sonhando outra vez, acordada.

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Não penso, não paro, não socializo
A resposta do louco é sempre o sorriso
A rima da rima tende ao infinito
Quando penso o que quero, paro e reflito
Quando não penso, não paro e simplesmente, realizo

sexta-feira, 1 de março de 2013

Edifícios

O estômago revirava em contrações. Comia o tempo a colheradas sem matar a fome. Fome do tempo, passado e futuro. O presente, de grego, não satisfaz a necessidade do corpo e da alma. Enfraquece os ossos do sujeito que logo de desmonta desfazendo-se, completando o ciclo, ao pó retornando depois de tantos anos incrivelmente normais e medianos. Sem muitos altos e baixos, além da única montanha russa que visitou na vida, uma lágrima seca se desprende da face percorrendo os vincos do rosto já idoso. É o fim, ele pensa, e o fim é. Nem mesmo um último suspiro para dramatizar a cena. Nem familiares, nem o choro da despedida. Ele se vai, como expelido do próprio corpo, em meio a um acesso de tosse, entre a reverberação de seus pulmões e o escarro do adeus. Quando olha pra trás, tudo o que vê é um corpo cansado de não fazer nada, estufado e quase da mesma cor do sofá em que eternizou a marca de suas nádegas cada dia maiores. Pediu pra voltar e tentar de novo, mas pensou melhor e retirou o pedido, alegando que pouco faria para ser diferente, não saberia nem mesmo por onde começar. Não queria outra vida de "e se..". Se tivesse entendido cedo que se não quisesse empoeirar deveria chacoalhar - se vez ou outra que fosse, talvez tudo seria diferente. Não acreditou que seria, por isso não o fez. Permaneceu sentado, em segurança. 

Pouco antes de sucumbir à crise de tosse, pensou que poderia ter feito mais da vida. Gostaria de ter ido mais vezes ao parque de diversões que ficou anos perto de sua casa e que viu se transformar em uma loja de automóveis usados que aproveitou alguns brinquedos enferrujados para, apesar dos altos riscos tetânicos, dar diversão aos filhos pentelhos dos clientes gordos e bigodudos. Depois, viu crescer grandes e fálicos edifícios enquanto seus pais choravam na cozinha com a pressão das empreiteiras que se utilizavam das dívidas dos imóveis para desapropriar as casas que estavam em seus caminhos. Àquela altura, já tinha pelos pubianos o suficiente para querer descobrir o que havia além daqueles edifícios, só não tinha colhos o suficiente para tal. Ficou em casa mesmo e foi por ali que viu o pai cair de joelhos com a mão direita apertando a camisa no peito, com a boca aberta tentando beber os últimos goles de ar até cumprimentar o chão com as bochechas. Bateu as botas ali mesmo. Sem reação, em choque, permaneceu sentado com o controle da TV na mão tempo o suficiente para que a mãe, que ouvira o estrondo de tantos quilos impactando os azulejos da cozinha, chegar ao recinto e desmaiar, não sem antes soltar um grito tão agudo que o fez saltar do sofá desafiando suas quase inutilizadas capacidades de equilíbrio bípede. Acordado do sonambulismo em que vivia, correu para socorrer a mãe e o pai. Sem saber a quem atender primeiro, entrou em desespero e começou a gritar na cozinha, chorando compulsivamente. O som primitivo que saiu de suas entranhas, somado ao anterior grito de sua mãe, de tão verdadeiros os sons assustaram os vizinhos que logo chamaram a polícia. Ao fim do dia, que parecia ser como outro qualquer, se viu sozinho em casa, com o pai agora tão frio como sempre havia sido na vida, porém de fato dentro de alguma geladeira e a mãe internada, com uma contusão na cabeça que não demorou muito a sarar, mas que deixou uma região careca na vasta cabeleira branca, concedendo à pobre senhora uma expressão de bruxa pior do que a que já tinha. 

Passado o susto e superadas as tristezas pelo finado pai, voltou a viver em harmonia com seu sofá e o controle da televisão. Pouco depois, foi-se a mãe, carregada pelas circunstâncias da vida. Circunstâncias essas bastante concretas, em uma esquina perto da padaria do "seu" José, onde cinematograficamente foi atingida por um ônibus coletivo e sobrevoou alguns pedestres desavisados caindo no asfalto frio da manhã. Não seria preciso dizer mais sobre o caso, não fosse pelo jeito marcante que ficou no chão, e pela tarifa abusiva de três reais e dez centavos do transporte coletivo. Um absurdo. Morreu então de olhos abertos encarando o início do dia, com um pobre sorriso no rosto, como se aceitasse o fim que recebera. Não se pode dizer então que era de todo ruim a rotina de sentar ao sofá e assistir em sequencia todos os seus programas favoritos, afinal, foi assim que ficou sabendo do ocorrido com a mãe, no noticiário das oito, que anunciou a morte da velha e iniciou uma grande revolta nacional contra a tarifa do coletivo. Poucos diziam, mas muitos pensavam que era melhor que tivesse acertado logo o prefeito, coitada da velha. 

Teve que se mudar. Carregou consigo somente o sofá, a televisão e as poucas roupas que possuía. Quando se deu conta que não tinha lembranças da família e voltou pra pegar umas fotos antigas, não encontrou mais a casa, que havia sido derrubada e dormia sossegada embaixo de uma nova construção. Acabou se perdendo sem a sua única referência. À noite, já na nova casa - se assim a pudesse chamar, decidiu o que já estava decidido há tempos: não sairia mais de casa para nada. Assim o fez, até  perecer sem que o mundo se desse conta. Até cuspir fora o que restou de sua alma naquele acesso de tosses fortes e nojentas.

Agora, espectro apenas, sem corpo que lhe pusesse travas, nem raízes que lhe prendesse, fez o que sempre esperou pacientemente poder fazer. Depois de anos sem se entender bem com as pernas, bateu as asas e voou para longe. Longe de si. Longe de todos.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Solidez

Brinca comigo com leveza
Transparente
Emana em mim
Sua pureza

Parado
Eu sólido
Em simples dureza
Vejo ela
Líquida e pura
Com tristeza

Brinca comigo com leveza
Acaricia minha
Rigidez
Depois vai embora
Me deixando assim
Molhado
Outra vez

Com sua leveza
Então se vai
Levando de mim
O tempo
Deixando só
O medo
Do tempo que fica

Eu sujo
E sem ela
Que leve se foi

Enferrujo

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Na companhia do vento

O quarto não está mais do que vazio, cheio de móveis e silêncio apesar da música no rádio. Música que toca em silêncio os pensamentos dele. O teto deste apartamento não tem manchas, é branco por inteiro à espera das marcas de uma vida um tanto quanto entediante. Ele fuma um cigarro na sacada, com a porta fechada pra fumaça não invadir o quarto, para além dos pulmões, junto com os primeiros raios da manhã que, esses sim, adentram o ambiente sem pedir licença. Os olhos estão perdidos em um horizonte poluído de edificações angulares onde é possível que esteja procurando o fim. O ponto mais longe daquela sacada. Não pensa em pular, gosta da vida, mas se voasse pularia. Voaria para além do horizonte vertical, em busca de uma montanha em que pudesse meditar sozinho. Na companhia do vento. Queria poder enxergar o vento, as cores de um cheiro bom e o sentido da vida. O cigarro acaba, a bituca também não voa e cai feito beijo no asfalto, com sabor de nicotina. Ele sorri porque pensou no beijo, no asfalto. Felicidade repentina pela vida que viveu. Que bom que já havia lido algo de interessante, mas queria mesmo era escrever. Algo que pudesse ficar para sempre, marcado, feito aquele beijo no asfalto agora carimbado pela borracha do pneu de algum andarilho motorizado. Somos todos andarilhos, ele pensa. Almocreves. Cedo ou tarde encontramos o nosso caminho. Às vezes cedo demais, às vezes tarde demais. Quase nunca do jeito que a gente quer, mas no fim, bem, encontramos.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Aquilo que não existe

Posso dizer que te amei, sim.
Talvez.
Porque tudo o que me ensinou é belo.
E o feio?
Também.
Não fosse isso, não saberia a diferença.
E hoje?
Hoje eu sei.
E então.
Não, não mais.
Nem um pouco.
Pouco, talvez.
Talvez.
E o que aprendeu?
O amor, claro.
E a falta dele
E a falta dele
Bom, já dizia ela
Ela?
Aquela, da TV.
Ah. Da TV.
Coração quebrado tem cura.
Tem?
A paz de não precisar mais aguardar a perfeição que não existe.
Ah. Belo, realmente.
Sim, belo. Fecha-se o ciclo.

sábado, 12 de janeiro de 2013

A valsa dos alcoolizados

Perguntei a ela por que não e ela me respondeu que era complicada de mais. 

- Como assim?
- Assim. - ela disse. 

E continuou. 

- Leia isso! - abrindo um livro do Caio F. Abreu e me empurrando para sentar em uma grande almofada que estava no chão.

"Os sobreviventes".

- Eu já li esse texto. É realmente complicado, mas também muito bonito. Assim como... 
- Não. Leia de novo, ouvindo esta música! - ela, meio mandona.

Vai até o rádio e coloca um vinil velho, da Ângela Ro Ro. Amor meu grande amor é a música. Ela ainda escuta discos de vinil.

- Conheço essa música também. - eu, o culto.
- Você precisa aprender a escutar a música. Conhecer não basta. - ela, mais culta do que eu.

E começa a dançar ao som da música, fazendo círculos no tapete Yin-Yang comprado usado em alguma feira coisas velhas. Com uma das mãos pra cima e a outra abraçando a si mesma pela cintura, de olhos fechados, ela dança a valsa dos alcoolizados. Eu a observo impaciente, sentado na grande almofada no chão, desconfortável. Ela abre os olhos e me encara.

- Leia o texto. Agora. - diz, sorrindo pra si mesma.

Começo a ler, como ordenado. Leio, escuto a música, observo ela dançando nas pausas e deixo aquilo me mostrar o caminho que tanto ela quer que eu percorra. "Amor meu grande amor" - ela canta junto. "...e tudo o que eu te dou, meu calor, meu endereço...". Leio o texto. Leio o texto e escuto a música. Leio a música, o texto. Escuto o texto enquanto leio a música e ela dança, dança sobre a minha alma que agora entende e se assusta. 

- Eu preciso ir embora. - digo. 
- Por que? - ela pergunta, congelando o movimento da dança. 
- Você é muito complicada.

Levanto e saio pela porta da frente.

sábado, 5 de janeiro de 2013

Até que a morte nos separe

Existe uma caixinha dentro da qual eu coloco tudo o que há. E também o que não ha, às vezes, quando convém. Depois chacoalho, misturo, abro a caixa e como o resultado feito cereal, matinal, que não pode ser comido outra hora do dia. Faço isso sentado numa poltrona velha e empoeirada, poeira de sal. Melhor seria se fosse de sal grosso. Bebo tudo com leite, tomando cuidado pro sal não invadir meu copo, nem meu corpo, por consequência. Assim vou indo, acendendo um livro no outro até que a morte nos separe. Talvez nem a morte, onde as fotografias eternizam a felicidade ou o sofrimento dos amantes. Um dia percebi sem querer que algo se mexia por trás da porta, sombras, pés talvez. Esqueci -me que a porta é transparente do ponto de vista do olho mágico e me deixei intrigar com a agitação das sombras dali da poltrona mesmo. Pra lá e pra cá, pra lá e pra cá. Às vezes sumia, deixando a curiosidade excitada quase o suficiente pra me fazer levantar. Pus em pé os olhos, encarando o teto, olhando para o centro de uma mancha preta que havia se formado em cima de mim ao longo destes anos todos de ócio, às vezes tédio, às vezes os dois, de mãos dadas. Quase me vi ali, no centro, o pensamento distante e cada vez mais longe até que um barulho do lado de fora me acordou os sentidos, me trazendo de volta. Olhei novamente pelo vão da porta, a sombra, de volta. Pra lá e pra cá. Endireitei as costas, estalando vértebra por vértebra descolando-me da poltrona, inclinando -me em direção a porta, os pés ainda cravados no chão e a bunda na poltrona, mas atencioso, com os olhos cerrados, martelo-estribo-bigorna, tudo na porta. Me aproximando cada vez mais de uma mudança, de levantar daquela poltrona e enfim acabar com aquele descanso rápido que começou anos atrás, com uma sentada depois de um dia de cão, sem emprego, sem mulher nem filhos nem nada. E lá estava eu naquele momento, prestes a mudar tudo aquilo, em ato contínuo, até que um arrepio cinematográfico me percorreu a espinha, disparando o coração e gelando o nariz entre os olhos. Travei, com o coração a mil. Três batidas na porta - engraçado, são sempre três. "Alguém em casa?". Calei, mais do que já estava calado. "Por favor, alguém, é importante!". Estanquei a respiração, corpo travado. Sombra pra lá, sombra pra cá. Parou, depois pra lá e pra cá de novo, até que escolheu um lado e foi-se. Direita ou esquerda? Não me lembro. Também tanto faz, pra mim olhando daqui seria uma coisa, pra ele outra, totalmente diferente. Esperei alguns segundos, soltei a respiração aliviado. Quase. Curvei as costas reencaixando minhas vértebras em seus devidos lugares. Comi uma colherada do meu cereal de possibilidades e acendi mais um livro, pra relaxar. Depois outro e outro, noutro. Até que a morte nos separe, enfim...