sábado, 5 de janeiro de 2013

Até que a morte nos separe

Existe uma caixinha dentro da qual eu coloco tudo o que há. E também o que não ha, às vezes, quando convém. Depois chacoalho, misturo, abro a caixa e como o resultado feito cereal, matinal, que não pode ser comido outra hora do dia. Faço isso sentado numa poltrona velha e empoeirada, poeira de sal. Melhor seria se fosse de sal grosso. Bebo tudo com leite, tomando cuidado pro sal não invadir meu copo, nem meu corpo, por consequência. Assim vou indo, acendendo um livro no outro até que a morte nos separe. Talvez nem a morte, onde as fotografias eternizam a felicidade ou o sofrimento dos amantes. Um dia percebi sem querer que algo se mexia por trás da porta, sombras, pés talvez. Esqueci -me que a porta é transparente do ponto de vista do olho mágico e me deixei intrigar com a agitação das sombras dali da poltrona mesmo. Pra lá e pra cá, pra lá e pra cá. Às vezes sumia, deixando a curiosidade excitada quase o suficiente pra me fazer levantar. Pus em pé os olhos, encarando o teto, olhando para o centro de uma mancha preta que havia se formado em cima de mim ao longo destes anos todos de ócio, às vezes tédio, às vezes os dois, de mãos dadas. Quase me vi ali, no centro, o pensamento distante e cada vez mais longe até que um barulho do lado de fora me acordou os sentidos, me trazendo de volta. Olhei novamente pelo vão da porta, a sombra, de volta. Pra lá e pra cá. Endireitei as costas, estalando vértebra por vértebra descolando-me da poltrona, inclinando -me em direção a porta, os pés ainda cravados no chão e a bunda na poltrona, mas atencioso, com os olhos cerrados, martelo-estribo-bigorna, tudo na porta. Me aproximando cada vez mais de uma mudança, de levantar daquela poltrona e enfim acabar com aquele descanso rápido que começou anos atrás, com uma sentada depois de um dia de cão, sem emprego, sem mulher nem filhos nem nada. E lá estava eu naquele momento, prestes a mudar tudo aquilo, em ato contínuo, até que um arrepio cinematográfico me percorreu a espinha, disparando o coração e gelando o nariz entre os olhos. Travei, com o coração a mil. Três batidas na porta - engraçado, são sempre três. "Alguém em casa?". Calei, mais do que já estava calado. "Por favor, alguém, é importante!". Estanquei a respiração, corpo travado. Sombra pra lá, sombra pra cá. Parou, depois pra lá e pra cá de novo, até que escolheu um lado e foi-se. Direita ou esquerda? Não me lembro. Também tanto faz, pra mim olhando daqui seria uma coisa, pra ele outra, totalmente diferente. Esperei alguns segundos, soltei a respiração aliviado. Quase. Curvei as costas reencaixando minhas vértebras em seus devidos lugares. Comi uma colherada do meu cereal de possibilidades e acendi mais um livro, pra relaxar. Depois outro e outro, noutro. Até que a morte nos separe, enfim...

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