sexta-feira, 1 de março de 2013

Edifícios

O estômago revirava em contrações. Comia o tempo a colheradas sem matar a fome. Fome do tempo, passado e futuro. O presente, de grego, não satisfaz a necessidade do corpo e da alma. Enfraquece os ossos do sujeito que logo de desmonta desfazendo-se, completando o ciclo, ao pó retornando depois de tantos anos incrivelmente normais e medianos. Sem muitos altos e baixos, além da única montanha russa que visitou na vida, uma lágrima seca se desprende da face percorrendo os vincos do rosto já idoso. É o fim, ele pensa, e o fim é. Nem mesmo um último suspiro para dramatizar a cena. Nem familiares, nem o choro da despedida. Ele se vai, como expelido do próprio corpo, em meio a um acesso de tosse, entre a reverberação de seus pulmões e o escarro do adeus. Quando olha pra trás, tudo o que vê é um corpo cansado de não fazer nada, estufado e quase da mesma cor do sofá em que eternizou a marca de suas nádegas cada dia maiores. Pediu pra voltar e tentar de novo, mas pensou melhor e retirou o pedido, alegando que pouco faria para ser diferente, não saberia nem mesmo por onde começar. Não queria outra vida de "e se..". Se tivesse entendido cedo que se não quisesse empoeirar deveria chacoalhar - se vez ou outra que fosse, talvez tudo seria diferente. Não acreditou que seria, por isso não o fez. Permaneceu sentado, em segurança. 

Pouco antes de sucumbir à crise de tosse, pensou que poderia ter feito mais da vida. Gostaria de ter ido mais vezes ao parque de diversões que ficou anos perto de sua casa e que viu se transformar em uma loja de automóveis usados que aproveitou alguns brinquedos enferrujados para, apesar dos altos riscos tetânicos, dar diversão aos filhos pentelhos dos clientes gordos e bigodudos. Depois, viu crescer grandes e fálicos edifícios enquanto seus pais choravam na cozinha com a pressão das empreiteiras que se utilizavam das dívidas dos imóveis para desapropriar as casas que estavam em seus caminhos. Àquela altura, já tinha pelos pubianos o suficiente para querer descobrir o que havia além daqueles edifícios, só não tinha colhos o suficiente para tal. Ficou em casa mesmo e foi por ali que viu o pai cair de joelhos com a mão direita apertando a camisa no peito, com a boca aberta tentando beber os últimos goles de ar até cumprimentar o chão com as bochechas. Bateu as botas ali mesmo. Sem reação, em choque, permaneceu sentado com o controle da TV na mão tempo o suficiente para que a mãe, que ouvira o estrondo de tantos quilos impactando os azulejos da cozinha, chegar ao recinto e desmaiar, não sem antes soltar um grito tão agudo que o fez saltar do sofá desafiando suas quase inutilizadas capacidades de equilíbrio bípede. Acordado do sonambulismo em que vivia, correu para socorrer a mãe e o pai. Sem saber a quem atender primeiro, entrou em desespero e começou a gritar na cozinha, chorando compulsivamente. O som primitivo que saiu de suas entranhas, somado ao anterior grito de sua mãe, de tão verdadeiros os sons assustaram os vizinhos que logo chamaram a polícia. Ao fim do dia, que parecia ser como outro qualquer, se viu sozinho em casa, com o pai agora tão frio como sempre havia sido na vida, porém de fato dentro de alguma geladeira e a mãe internada, com uma contusão na cabeça que não demorou muito a sarar, mas que deixou uma região careca na vasta cabeleira branca, concedendo à pobre senhora uma expressão de bruxa pior do que a que já tinha. 

Passado o susto e superadas as tristezas pelo finado pai, voltou a viver em harmonia com seu sofá e o controle da televisão. Pouco depois, foi-se a mãe, carregada pelas circunstâncias da vida. Circunstâncias essas bastante concretas, em uma esquina perto da padaria do "seu" José, onde cinematograficamente foi atingida por um ônibus coletivo e sobrevoou alguns pedestres desavisados caindo no asfalto frio da manhã. Não seria preciso dizer mais sobre o caso, não fosse pelo jeito marcante que ficou no chão, e pela tarifa abusiva de três reais e dez centavos do transporte coletivo. Um absurdo. Morreu então de olhos abertos encarando o início do dia, com um pobre sorriso no rosto, como se aceitasse o fim que recebera. Não se pode dizer então que era de todo ruim a rotina de sentar ao sofá e assistir em sequencia todos os seus programas favoritos, afinal, foi assim que ficou sabendo do ocorrido com a mãe, no noticiário das oito, que anunciou a morte da velha e iniciou uma grande revolta nacional contra a tarifa do coletivo. Poucos diziam, mas muitos pensavam que era melhor que tivesse acertado logo o prefeito, coitada da velha. 

Teve que se mudar. Carregou consigo somente o sofá, a televisão e as poucas roupas que possuía. Quando se deu conta que não tinha lembranças da família e voltou pra pegar umas fotos antigas, não encontrou mais a casa, que havia sido derrubada e dormia sossegada embaixo de uma nova construção. Acabou se perdendo sem a sua única referência. À noite, já na nova casa - se assim a pudesse chamar, decidiu o que já estava decidido há tempos: não sairia mais de casa para nada. Assim o fez, até  perecer sem que o mundo se desse conta. Até cuspir fora o que restou de sua alma naquele acesso de tosses fortes e nojentas.

Agora, espectro apenas, sem corpo que lhe pusesse travas, nem raízes que lhe prendesse, fez o que sempre esperou pacientemente poder fazer. Depois de anos sem se entender bem com as pernas, bateu as asas e voou para longe. Longe de si. Longe de todos.