segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Literatura Quântica

Ele parece são. Escreve na máquina de escrever enquanto fala:

"As primeiras palavras de um homem são um universo de possibilidades. Dali podem surgir outras e outras que formarão frases e parágrafos que por sua vez formarão um texto. Um belo texto. Um texto de merda. Uma história qualquer. Cada palavra falada pode direcionar uma ação pra outro lugar e a vida toda tomar um rumo diferente por isso. Pode-se criar mais do que uma simples história com poucas palavras. Pode-se criar vidas, pessoas, personagens de um mundo imaginário com profundidade psicologica muito mais interessante do que a de seu próprio criador. Das entranhas insanas de um homem aparentemente comum pode existir um infinito de gente louca. Um e tantos. Quem foi que disse que dois corpos nunca ocupam um mesmo lugar no espaço. Os grandes escritores são prova viva de que isso é uma grande mentira! Um e tantos, no mesmo corpo, ocupando o mesmo espaço."

Ele conta com os dedos. Parece ver uma grande idéia em sua frente. O olhar é esperançoso. Volta a escrever na máquina, com vigor, e continua falando:

"Se cada pessoa no mundo criasse um único personagens, teriamos para um mundo tão pequeno o dobro de pessoas que temos hoje. Se subtrairmos as pessoas que não criam nada, ou se criam não demonstram por qualquer motivo, e considerarmos no entanto que existem pessoas que criam mais de um, teremos uma boa quantidade, em média, no final, de pessoas extremamente interessantes que sequer existem! E o pior, você leva o maior papo com eles na sua cama, sozinho a noite. Muitas vezes eles são a sua única e indispensável companhia. Seu único amigo, seu único amor! Você se sente ridículo por isso?"

Ele se lembra de alguma coisa, faz as contas. Escrevendo acelerado ele pondera:

"Bom, toda essa conta pode variar um pouco se considerarmos que existem personagens baseados em alguma pessoa que é real. Ora, mas ele não deixa de ser um personagem também, com projeção na vida real. Ou seria a pessoa real, com projeção no imaginário? Talvez não importe. É como a dualidade partícula - onda de um elétron. É particula ou é onda? Na verdade ele é os dois, é um ser real inserido em outra realidade! Confuso? Não mais do que a mecânica quântica do maldito elétron! Deixe que seja os dois. É homem real em mundo imaginário e é criatura imaginária em mundo real. Começa aqui a teoria da dualidade homem - criatura, ou pessoa - personagem ou... foda-se o nome! Nomes são apenas formalidades. Afinal, definir é limitar, não é mesmo?"

Ele duvida. continua pensando. Está delirando em pensamentos. Escrevendo.

"Isso me faz pensar: e se houver ainda um terceiro estado do homem - criatura - pessoa - personagem? Qual seria? Talvez seja mais simples do que parece. Se existe a criação, inspirada em uma criatura, não nos esqueçamos então do criador. Esse, o terceiro estado do homem, ilimitado e munido de suas palavras, capaz de inventar e reinventar, apagar e refazer, criar e destruir."

Ele está louco. Tem as mãos úmidas de suor enquanto bate forte na máquina de escrever.

"O homem nascido criador não pode dispensar seus dons, não pode abandonar tantas criaturas que ele pode construir. Seria um absurdo, uma falta de compromisso. Mas como? Como? Como criar o tempo todo? É difícil, falta inspiração. É mais do que se pode suportar, é redenção, é não reconhecer a própria vida, é doar-se, é sangrar, é morrer para que o outro possa viver por 590 páginas de uma história que não é a sua. É desesperador. Causa inveja, causa raiva. Por que esta merda de vida que eu escrevo não é a minha? Como eu sou capaz de escrever tantas coisas boas e belas e isso não existir no mundo real. Eu quero desistir, quero parar, quero parar de escrever."

Ele está nervoso e louco. Quase desesperado. Ele bebe, ele fuma, ele escreve, ele fala.

"Não posso. Não devo. Não, não. As pessoas dependem de mim. E a leitura no quarto sozinho? E os amigos e amantes dos pobres coitados? Eles dependem de mim, aliás deles. Da criação, não mais do criador. Da criação. Foda-se o criador. É o fardo. É... este é o maldito fardo, a maldita cruz: não viver, aliás, viver para escrever!"

A máquina bate o final da página. O som o acorda da insanidade. Ele para. Ele observa ao redor. Olha para folha assustado. Arranca a folha da máquina e a coloca contra a luz. A folha está em branco.

"Tanto foi falado e há tanto pra se dizer. Foda é escrever com palavras tão limitadas um pensamento tão complexo e lindo. Quero uma cerveja, um cigarro, um amor na vida. Quero... quero que se foda!"

Ele continua olhando pra folha. Ele quer que o mundo se foda.

domingo, 7 de agosto de 2011

O melhor de Bob Dylan

Ela vai à vitrola dele e fuça o que tem la dentro. Levanta o disco à favor da luz. Absorvendo os raios fotóticos amarelados de lâmpada em final de vida, o nome Bob Dylan. Algum "Best off..." ou coisa assim, de quem conhece pouco o artista e confia na opinião dos outros sobre o que deve ou não ser ouvido sobre aquele tal. Poe pra tocar, baixinho.

Ele oferece: - uma dança, minha cara?

-Minha cara? Que careta. Quem dança Bob Dylan?
-No meio de todas essas loucuras, o que você não dançaria? Neste momento, não recusaria nem uma valsa de debutante.
-Eu já debutei há tempos meu "caro", hoje eu labuto pra não dançar mais.

Ele estende a mão e insiste: - uma dança Bob Dyliânica com o caro aqui. Depois disso, curtimos o mundo lá fora, se ele não curtir a gente antes.

-Depende. Tem mais? - oferece a mão a ele.
-Tem, mas pra depois. - puxando -a para si. Agora aproveita o que ja está na sua cabeça... ou vai estar em qualquer minuto.
-Até agora, não senti nada - e explode numa risada insanamente apaixonante.
-Exatamente agora, nessa tua risada, eu senti tudo.
-Então você ja está doidão? Eu devo ser forte pra essas coisas...
-Deve ser.. a certas drogas eu caio de joelhos na primeira risada.

Silêncio.

-Vamos esquecer o mundo. - ela sugere.
-Que mundo? O nosso ou o deles?
-Os dois, criemos um terceiro. Um mundo igualitário, ditatorial, onde todo mundo é obrigado a dançar ao som de Bob Dylan.
-Pensei que você achasse isso loucura.
-Eu acho, mas aqui na loucura, não existe nada mais normal. Um viva a Bob Dylan e a todos que dançam por ele.
-Um brinde.

Brindam copos imaginarios.

Ele continua: - escuta... eu tenho que te falar algo.

-É mesmo necessário?
-Talvez... talvez não.
-Sabe, as vezes as coisas faladas assim, aqui no nosso terceiro mundo - ela ri do próprio trocadilho - podem não ser reais nos outros mundos. No deles, ou no nosso.
-É.. talvez não seja assim tão importante.

Ela afasta o rosto do peito dele e o encara nos olhos.

-Sou curiosa o suficiente pra perguntar uma vez. O que é?
-Deixa, quem sabe outra hora o escritor que nos imagina e fala por nossas bocas crie coragem e escreva em mim o que eu quero lhe dizer.
-É... talvez ele escreva direto em mim mais pra frente nessa nossa história.
-Como assim?
-Certas coisas não precisam ser ditas. Cedo ou tarde ele vai me fazer perceber sóbria algo que eu só percebo assim, inibriada, totalmente aberta aos meus sentimentos.
-Seria mais fácil assim, senhor escritor! - ele fala olhando pra cima.
-Seria mais fácil! - ela grita olhando pra cima também.

Os olhos aos céus se abaixam lentamente e se encaram, observando os céus e viagens astrais um dentro do outro.

-Tão mais fácil... - fala um dos dois.