quarta-feira, 19 de maio de 2010

Prematuro

Era tarde fria naquela cidade pacata. Ele, deitado ao chão e coberto de trapos procurava o galo mais confortável em sua cabeça pra descansar. Virava para um lado, virava para o outro, mas não achava. Maldita cabeça que não fora feita como um travesseiro, mas toda de osso duro. Pelo menos assim, distraído, não tinha tempo pra pensar na fome.

Uma pessoa que passou ao seu lado, olhou e deu de ombros. Outra, jogou uma moeda pra se sentir melhor. Ele continuou se ajeitando e não deu a mínima bola. Pensava agora em quantos ossos devia ter no corpo e como todos eles doíam naquele frio. Os dentes rangiam e ha noites não dormia direito com tremedeiras. Não que nas noites de verão dormisse melhor, afinal de contas, era um homem de rua que dormia no chão e seria uma mentira dizer que já tivera uma boa noite de sono. Talvez quando era criança, quando dormia no colo da mãe, mas também não se lembraria agora.

Por vezes ficava parado, olhando para o nada, tentando se lembrar desta época distante de quando era pequeno. Não consseguia recuperar a memória daquele tempo. Talvez pelo uso abusivo de drogas, talvez porque sua mãe morreu quando era muito novo e não teve tempo de ser criança. Não importa, o que importa é que não lembrava e às vezes, louco de drogas, imaginava ter nascido homem feito. Tinha alucinações e se via saindo da vagina de sua mãe cheio de sangue, barbudo, com uma garrafa de vinho barato em uma mão e um cigarro na outra. Quem o observava em plena loucura via um homem nascendo do ventre de uma mãe imaginária, com um sorriso parecendo choro e fumando um cigarro imaginário. Depois tossia sangue e caía ao chão em desmaio. No dia seguinte, acordava com o sol na cara e o corpo doído do nascimento. "Nasci prematuro" - pensava. "Homem feito, mas prematuro". Pegava suas coisas e ia dormir em outro lugar.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Nãna

Lembro que ela me pediu um gole da minha soda. Neguei de brincadeira, mas ela não entendeu. Logo fechou a cara e não queria mais falar comigo, dizendo que eu era um egoísta. Tentei explicar, mas ela fez charme. Brincou comigo até que eu jurasse que não queria magoá-la e que dividiria meu refrigerante, sorvete, cerveja ou o que fosse sempre que ela pedisse, sem pensar duas vezes. Jurei contrariado, mas jurei.

"Lu", é assim que a chamo. Gosta quando brinco com seu nome e uso pedaços dele ao invés de usar tudo de uma vez. Assim como faço com ela quando estamos na cama, ela diz. Pedacinho por pedacinho até que o todo se satisfaça. Ela lembra de sexo quando a chamo de Lu, ou Nana - pronunciando Nãna, com voz de criança. Luana se excita. E eu não tenho vergonha de contar isso. Todo casal se trata como criança e, no geral, são realmente duas crianças. Quando se beijam de manhã viram adultos para os seus trabalhos e para a vida dura, cotidiana. De volta, na janta, se beijam de novo e voltam a ser dois adolescentes apaixonados ou briguentos, depende do casal, ou do tempo que estão juntos. Cedo ou tarde, todos viram adolescentes briguentos.

"Quer sorvete, Lu?", perguntei. Ela aceitou, com a condição de que dividíssemos. Estava me testando, provavelmente e eu passei. Comprei um sorvete de casquinha porque sei que ela gosta de comer o "rabinho", que é a parte final, quando sobra apenas a casca seca e doce. As vezes comentava com ela que tambem gostaria de comer o "rabinho". Ela entendia e sorria, sem graça, dizendo: "Um dia, meu amor. Seja paciente. Se não, o que irá sobrar pra depois do casamento?". Eu sempre dava risada, não dela, mas de pensar que esperaria anos por isso e que talvez nem acontecesse. Ela comendo o rabinho do sorvete enquanto pensava em casamento e eu pensando em casamento querendo comer o rabinho. Que ironia.

Seguimos até o final do parque. Era um parque de diversões desses que aparecem em terrenos abandonados, onde em outros momentos haviam circos ou feiras de carros usados. Nenhum brinquedo parecia confiável o suficiente pra se arriscar. Demos a volta e caminhamos em direção a saída. Consigo me lembrar perfeitamente de nós dois, percorrendo o caminho de terra que dava à entrada do parque. Ao fundo estava a roda gigante iluminada, que acendia luzes do centro para fora, amarelas e vermelhas parecendo fogo. Aos lados, palhaços e crianças corriam quase em camera lenta, se encurralando em brincadeiras de pegar. No centro, ela se deliciando com o que sobrara do sorvete enquanto eu a abraçava pelos ombros com o braço esquerdo, bem apertado em sinal de proteção, e segurava na mão direita um urso de pelucia - conquistado na barraquinha três do palhaço Suruba ou sei la o que. À nossa frente, apenas a escuridão do mundo afora, nos esperando na saída.

domingo, 9 de maio de 2010

Nua e fria

Por mais esperado que fosse que ela chorasse, não chorava. Mantinha sempre aquela cara estática, sem expressão qualquer, que não deixava espaço para especulação alguma sobre o que estava pensando. Cara-de-cu, de fato. Devia estar degustando o amargo gosto da perda. Os olhos se mantinham fixos no caixão à sua frente. Seu pai morto, estendido e duro feito pedra. Feito a cara dela, que não soltava uma lágrima.

Era uma cena triste, claro. Aliás, seria se ela não fosse uma desgraçada que fugira de casa aos doze anos sem mais nem porque. Diziam que era por causa de um namoradinho qualquer. Vai saber. Ficou sabendo do pai doze anos depois, morto em um acidente estúpido de carro. Coincidência maluca. Doze anos com ele, outros doze sem ele. Ou pior, agora o resto da vida.

A mãe a olhava com desprezo, tamanho era o baque de ver a filha ingrata depois de tantos anos sem uma única notícia. Pelo menos tivera a descência de aparecer no enterro do pai. Pena que indecentemente de saia curta e colada ao corpo, ainda que preta em sinal de luto. Mais parecia uma prostituta fingindo chorar a morte do seu cafetão. Um choro sem lágrimas, quase indiferente.

Quando o corpo alcançou o fundo negro e obscuro da cova, ela suspirou. Soluçou duas vezes e desembestou a chorar. A mãe a olhava sem entender e com certa vergonha daquele choro em frente aos amigos. Poucos sabiam que era a filha. Outros pensavam que era a amante. Todos achavam que era puta. Inclusive a mãe que não sabia o que a filha fazia pra sobreviver.

Ao cair da última pá de areia, a mãe se ajoelhou e chorou em silêncio. Todos foram saindo, deixando a senhora chorar seu luto e por fim ficaram mãe e filha, frente a frente, separadas pelo montinho de areia que cobria o pai. A moça continuava em pé, com o choro já contido, olhando para a mãe e buscando semelhanças no rosto e no corpo. Quem observasse de longe veria a filha a esquerda do túmulo, em pé, de saia curta e inteira de preto e a mãe à direita, ajoelhada de saia longa, também de preto. Ao meio, o pai morto e enterrado, com uma lápide em cima de sua cabeça que dizia: "pai esquecido, marido amado". Injusto demais para terminar numa lápide nua e fria.

...

Escrever é perda de tempo.

Assim como respirar.

Ou dormir.

domingo, 2 de maio de 2010

Noite quente

Não bastasse o baque surdo do punho que me acertava em cheio o olho esquerdo, veio também um velho conhecido insulto:
-Filho da puta!
-AHHHHHHH! - respondi, de dor.

Fiquei estirado no chão por alguns segundos tentando entender o que havia acontecido e então entendi. Maria era mulher dele e eu não sabia. Ele, marido dela, era agressivo e eu também não sabia.

Tentei me levantar devagar, mas desisti. Percebi que meu esforço pra manter o copo de bebida intacto havia sido inútil. Alias, não inútil por completo, o copo ainda estava intacto, a bebida é que agora estava inteira em cima de mim. Justo na blusa novinha que Maria havia me dado. Igual à dele, por sinal. Talvez isso tenha me entregado.

-Levanta seu merda! - ele continuou.
-Me dê um minuto. - pedi.
-Ora, seu...
-Amor, pare! - gritou Maria, finalmente a meu favor.
-Como "pare", sua.. sua... Ora, não fuja! - gritou ele novamente quando me viu engatinhando em direção à porta.
-Desculpe, senhor. Eu não sabia! - confessei.
-Mentiroso! - e me chutou as pernas me fazendo cair de novo.
-Ele não sabia mesmo, amor! Juro! - Maria piedosa.
-Sua biscate!
-Hei! Não fale assim com a mulher que nos conquistou! - falei.
-Seu atrevido de merda!! Levanta daí! - gritou o marido.
-Não levanto! Tá doendo!
-Quer gelo? - perguntou Maria.
-Sim, por favor.
-Se for buscar vai ser pra sua cara sua puta! - falou o marido.
-O quê? - Maria puta.
-Eu quis dizer... - marido medroso.
-Eu vou embora, seu bosta!
-Não meu amor, me desculpe! Por favor, eu...
-Por isso eu o traí! Seu pau mole de merda! - Maria ofensiva.
-Não! Espera... - marido chorão.
-Ela foi embora! - eu, intrometido.
-Eu vou te matar! - e me pegou pelos cabelos.
-Calma, amigo! Calma! Ai que dor, filho da puta!
-Lá fora! Agora!
-Lá fora? Já chamamos atenção aqui dentro, por que levar isso pra lá? Vai estragar minha imagem nas ruas.
-Cale a boca!
-Não calo! Você vai me bater então eu vou te encher o saco!

Que fique claro que eu não estava realmente calmo, apesar da conversa deixar a entender que sim. Estava completamente desesperando, me debatendo feito louco, com um brutamontes me segurando pelos cabelos prestes a me mostrar que não era de fato um "pau mole" como a mulher havia dito.

-Reaja! Lute como um homem! - cuspia o cara.
-Não quero te matar! - respondi, me cagando todo.
-Me bate, seu merda!
-Me bate você, seu viado sem bolas!

Depois disso, me lembro apenas de acordar na rua, sem meus sapatos e sem minha carteira, com dois olhos inchados e uma dor de cabeça insuportável. Tenho quase certeza também que tinha cuspe no cabelo, ou cocô de pomba, talvez.

As pessoas passavam olhando pra mim, mas ninguém me ajudava, achando que eu era um mendigo ou um bandidinho qualquer. Levantei-me devagar. Procurei por algum trocado nos bolsos, mas nada. Nem um centavo, não me deixaram nada. Olhei para o bar em frente, onde tudo aconteceu. Entrei.

-Bom dia! - falei.
-Tem certeza? - perguntou o dono.
-Depende. O senhor vende fiado?
-Não.
-Então esquece, vai ser um péssimo dia.

sábado, 1 de maio de 2010

Noite fria

Estavam bêbados.

Ele sentado na cadeira de plástico branca, ela em pé ao lado dele. Enquanto ele tragava a fumaça de um cigarro light, ela soltava o ar gelado e cheirando a cerveja que se acumulava em seus pulmões enquanto ela pensava. Nele, talvez.

Trocavam de papéis. Ela pegava o cigarro e tragava enquanto ele soltava o ar gelado e batia com a ponta dos dedos nos cantos da cadeira branca.

Quando ela resolveu se abaixar para falar alguma coisa ao ouvido dele, ele a beijou.

Ela aceitou, mas levou na brincadeira. Ele estava bêbado demais pra ter certeza se aquele beijo tinha realmente acontecido.

Os dois retomaram o ritual da fumaça e ar gelado até que ela falou:

-Você é aquela paixão de colegial, sabe?

-Sei. - ele respondeu.

Trago. Ar gelado. Dedos na ponta da cadeira branca.

No céu nada se via, além da neblina branca de mais um noite fria.