segunda-feira, 10 de maio de 2010

Nãna

Lembro que ela me pediu um gole da minha soda. Neguei de brincadeira, mas ela não entendeu. Logo fechou a cara e não queria mais falar comigo, dizendo que eu era um egoísta. Tentei explicar, mas ela fez charme. Brincou comigo até que eu jurasse que não queria magoá-la e que dividiria meu refrigerante, sorvete, cerveja ou o que fosse sempre que ela pedisse, sem pensar duas vezes. Jurei contrariado, mas jurei.

"Lu", é assim que a chamo. Gosta quando brinco com seu nome e uso pedaços dele ao invés de usar tudo de uma vez. Assim como faço com ela quando estamos na cama, ela diz. Pedacinho por pedacinho até que o todo se satisfaça. Ela lembra de sexo quando a chamo de Lu, ou Nana - pronunciando Nãna, com voz de criança. Luana se excita. E eu não tenho vergonha de contar isso. Todo casal se trata como criança e, no geral, são realmente duas crianças. Quando se beijam de manhã viram adultos para os seus trabalhos e para a vida dura, cotidiana. De volta, na janta, se beijam de novo e voltam a ser dois adolescentes apaixonados ou briguentos, depende do casal, ou do tempo que estão juntos. Cedo ou tarde, todos viram adolescentes briguentos.

"Quer sorvete, Lu?", perguntei. Ela aceitou, com a condição de que dividíssemos. Estava me testando, provavelmente e eu passei. Comprei um sorvete de casquinha porque sei que ela gosta de comer o "rabinho", que é a parte final, quando sobra apenas a casca seca e doce. As vezes comentava com ela que tambem gostaria de comer o "rabinho". Ela entendia e sorria, sem graça, dizendo: "Um dia, meu amor. Seja paciente. Se não, o que irá sobrar pra depois do casamento?". Eu sempre dava risada, não dela, mas de pensar que esperaria anos por isso e que talvez nem acontecesse. Ela comendo o rabinho do sorvete enquanto pensava em casamento e eu pensando em casamento querendo comer o rabinho. Que ironia.

Seguimos até o final do parque. Era um parque de diversões desses que aparecem em terrenos abandonados, onde em outros momentos haviam circos ou feiras de carros usados. Nenhum brinquedo parecia confiável o suficiente pra se arriscar. Demos a volta e caminhamos em direção a saída. Consigo me lembrar perfeitamente de nós dois, percorrendo o caminho de terra que dava à entrada do parque. Ao fundo estava a roda gigante iluminada, que acendia luzes do centro para fora, amarelas e vermelhas parecendo fogo. Aos lados, palhaços e crianças corriam quase em camera lenta, se encurralando em brincadeiras de pegar. No centro, ela se deliciando com o que sobrara do sorvete enquanto eu a abraçava pelos ombros com o braço esquerdo, bem apertado em sinal de proteção, e segurava na mão direita um urso de pelucia - conquistado na barraquinha três do palhaço Suruba ou sei la o que. À nossa frente, apenas a escuridão do mundo afora, nos esperando na saída.

2 comentários:

  1. Ela comendo o rabinho do sorvete enquanto pensava em casamento e eu pensando em casamento querendo comer o rabinho. Que ironia.

    Hahahahaha. Ótimo!

    Se eu não estivesse na minha fase Bukowskiana eu diria: como assim, acabou? Depois de Bukowski, textos "sem fim" passaram a me seduzir.

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  2. Que legal! Vc escreve muito parecido com o Alan Parker...Conhece?

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