sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Travesseiro

Ela enfiava a cabeça a fundo no travesseiro tentando dormir e esquecer o dia terrível que tivera. Revirava os olhos e fazia força para fechá-los, mas o sono não vinha. Em compensação o pensamento ia longe, caminhando pelos momentos cinzentos daquela quarta-feira tão demorada. Era outono e os dias já eram por si próprios cinzentos, mas na cabeça dela tudo era mais escuro e tinha o ar mais pesado. Tentava desviar a atenção para problemas menores, que pudessem lhe distrair e enfim receber o sono como um presente onírico digno de oferendas, mas não conseguia parar de pensar: ela em pé, de costas e ele sentado, fumando.

A tensão podia ser sentida em todos os músculos no segundo antes de começar a falar e depois o olhar dele duro, denso, pontiagudo prendendo-a ali, imóvel. Não conseguia se lembrar bem de como as palavras saíram durante a conversa, mas ainda podia sentir a boca seca que deixava o monólogo obviamente ainda mais seco e cortante, tão desagradável quanto a própria falta de saliva para umedecer as vogais. Depois, lembrava dele se levantando, pegando o resto do uísque de cima da mesinha de centro e tomando de um gole só. Último trago, longo e forçado, talvez com raiva. Soltou a fumaça para o alto e na sala, onde já parecia ter uma nuvem negra e trovejante acima de suas cabeças, começou a chover no pensamento dos dois. Era o fim.

Ele veio em direção a ela pisando compassadamente, deixando o corpo pesar por completo em cada pé. O som dos passos no tapete antigo, presente de casamento, parecia ecoar seco na casa inteira. Subia as escadas e dava adeus aos cômodos por onde andara, à cama onde se cruzava com outros passos esquentando a frieza do dia-a-dia, no passado, ao banheiro, ao corredor, à sacada e enfim saía pelas janelas como se nunca tivesse entrado. Cambaleando, tentou beijá-la, mas ela o conteve e antes que caísse o segurou em seus braços. Talvez consciente de que aquele seria o último abraço, o apertou com força e inclinou o pescoço para sentir o cheiro, pela última vez, do pescoço robusto do amante. Ou daquele que já fora o amante. Colônia e uísque. Imaginou se Johnny Walker não daria um bom nome de perfume. Será que era francês? E teve o pensamento interrompido pelo choro, do outro, em seus braços, que não se importava se Johnny, Jack, José ou o Papa usavam perfume. "Você está bêbado", pensou em dizer. Não disse. Deu tapinhas nas costas do homem grande e agora pouco imponente que chorava e pediu para que fosse embora. Ele foi.

Ela passou o resto do dia sentada numa poltrona, de frente para a janela da sala, olhando a árvore com um balanço do lado de fora, imaginando que em sua vida, como no balanço, sempre sendo empurrado por alguém, por vezes mais altas e por outras mais baixas, uma hora ou outra acabaria por ter que se empurrar sozinha.

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