sábado, 11 de setembro de 2010

A umidade relativa do ar

-Não posso sair. - ela me disse. - Sou uma fugitiva. Todos estão atrás de mim. CIA, FBI, Scotland Yard e toda a polícia de londres. Terei que me esconder pra sempre.

-Mas estamos no Brasil, aqui você não corre mais riscos.

-Isso é o que você pensa! Eles são espertos e vão nos encontrar.

-O que você fez afinal?

-Não posso contar. Só tenho que ficar escondida. Vai me ajudar ou não?

-Depende. Eu tinha intenções de sair com você, mas depois disso acho que fica inviável. Afinal, não queremos ser pegos, não é mesmo?

Ela me olhou. Entendeu o ar de sarcasmo da frase. Sorriu e disse:

-Tolinho! Mas é isso mesmo, não queremos ser pegos.

-Tudo bem! Posso ficar com você por hoje pelo menos?

-Por hoje? Eu tinha pensando um pouco mais do que isso. - disse ela fazendo bico.

-É uma oferta tentadora, mas eu não corro risco de vida ficando com você?

-Corre, muitos, mas não acha que vale a pena?

-Realmente. Certa vez me disseram que a gente sempre corre riscos, com todo mundo, de ser magoado, deixado na mão ou, no seu caso, de ser pego e provavelmente morto.

-Não seja tão dramático. E foi eu quem te disse isso!

-Ah!

Realmente, havia sido ela e eu não me lembrava. Continuei:

-Que tipo e vilã é você afinal que não tem uma parceira de vilanices?

-Do tipo que tinha uma parceira, mas estava perigoso demais e precisamos nos separar.

-O que aconteceu?

-Nos separamos na última rodoviária. Ela foi pra algum lugar na Antártica e eu vim parar nessa pacata cidade no Brasil. Aliás, que clima ruim tem esse lugar ein! Apesar que de onde eu venho é bem pior. Sabia que a umidade relativa do ar no deserto chega a seis-por-cento, apenas?

-É, já ouvi falar.

Gostava da maneira inteligente que ela falava. Às vezes usava palavras difíceis pra mostrar o quanto era conhecedora do mundo das letras. Não sei se conhecia mesmo ou se usava como havia aprendido, mas como eu mesmo não conhecia o real significado daquelas palavras, aceitava tudo o que ela falava sem questionar. A postura e a certeza com que falava também me impressionavam. A linguagem corporal diz noventa-por-cento do que se quer falar. Pode-se dizer sim com o corpo, dizendo não com a voz. Aprendi com ela também, não por ela ter me falado, mas a observando somente.

-De onde eu venho as vezes bate oito! - ela continuou.

-Oito o que?

-Oito-por-cento. A umidade do ar.

-Poxa. Você mora perto de algum deserto?

Me olhou fazendo careta.

-Claro que não.

-Tudo bem. Me conte porque você e sua parceira de crime se separaram.

-Tocamos o terror por ai. Assustamos algumas criancinhas com nossas caras de más e tivemos que nos separar para os pais furiosos não nos encontrarem.

-Com essa cara ai, assustando criancinhas? Tudo bem, não quer contar não conte.

-Não se preocupe, não foi nada grave.

Ficamos em silêncio por alguns minutos. Ela às vezes ia à janela observar a rua. Afastava a perciana com os dedos e colava o olho no vidro. Fazia tudo aquilo parecer um filme.

-E nós? - perguntei.

-O que tem "nós"?

-O que estamos fazendo afinal?

-Nos escondendo.

-Não foi isso o que perguntei. Quero saber porque você se esconde do mundo, mas permite que eu esteja aqui com você?

-Eu gosto de você, eu acho.

-Eu também gosto de você, mas o que isso significa?

-Significa que tudo está como deveria estar.

-Assim mesmo, dois fugitivos? Não poderiamos estar por ai, andando de mãos dadas, como casais normais?

-Tudo tem seu tempo, bobinho. Além do que, não somos um casal ainda.

-Ainda?

-Foi o que eu disse, tudo tem seu tempo.

-Mas e se algo acontecer e você for pega? Ou se eu for pego?

-Você não está sendo procurado e se eu for pega, não será pra sempre. Você se preocupa demais.

-E você de menos.

-Foi o teu jeito de ser que me ensinou. Certas coisas são simples. O que é nosso é nosso e está guardado. Ninguém pode tirar de nós.

Fiquei em silêncio, com a respiração suspensa. Pensativo.

-Você... sempre dizendo a coisa certa, na hora certa. - conclui.

-Foi o que eu disse. Coisa certa, hora certa, lugar certo. Tudo exatamente como deveria estar.

Sorri.

-Agora vai até a geladeira e pega uma coisa que está la dentro. É uma surpresa pra você. Vai saber o que é quando abrir a porta.

Fui até a cozinha. Abri a geladeira e gritei com a cabeça la dentro.

-Você fez a sua torta pra mim! Finalmente!

Voltei à sala e a encontrei apoiada na janela, à meia luz do cair do dia. A cor do céu refletia na pele branca daquele rosto cheio de fibras presas ao músculo da face, que faziam buraquinhos bem característicos e perfeitos, ainda que assimétricos, naquele rosto que sorria, acentuando as marcas. Trocamos olhares envergonhados. Certos de que tudo realmente estava como deveria estar.

-Sim, fiz pra você. - ela respondeu.

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