Sigo. Sozinho. Às vezes eu olho ao redor, nos rostos das pessoas que passam, os
transeuntes, e penso, ou penso que penso, será que eles estão lá, será que
todos estão vendo também? São espíritos errantes que não aceitaram o fim. Que
fim? Serei eu um espírito que não admite o fim? Que fim?
As mil-e-uma
toxinas do cigarro amarelaram a minha barba, o tempo corroeu os meus dentes e
roubou o meu sorriso, a vida comeu minha alma a garfo e faca e agora eu
apodreço, sentado, fumando. Devolvo os filmes na locadora e pego mais três,
sento para assistir, muitas vezes o mesmo filme sem ter certeza se já assisti
ou não. O cara da locadora me olha como se eu fosse louco. Fico confuso, também
não sei se sou louco ou não. Devolvo, pego mais três, de novo não sei se já vi,
tenho a vista ruim e não sei onde coloquei os meus óculos. Também tanto faz,
quanto menos eu vejo, mais eu posso me dar ao luxo de assistir o mesmo filme
vez após outra.
Acendo o
cigarro, sirvo o gole, bufo a vida pra fora da boca, aspiro álcool, devolvo cara
feia, trago, assopro, trago, guardo, assopro, trago, bebo mais um gole, tusso
com os olhos vermelhos, morro mais uma vez no beijo do copo, no sexo oral com a
nicotina, te chupo, me chupe, me morda, devolva a minha vida, sorrio, enfim,
sorrio.
Acordo no
sofá com o DVD na tela de menu inicial. Dou o play, durmo de novo, acordo sete
minutos depois, a cabeça dói, a boca gruda, parece que masquei cola bastão,
bebo água suja, da torneira da cozinha. A cabeça dói, o olho dói, os joelhos
doem. Deito na cama com os olhos lacrimejando, com remelas nos cantos que coço
sentindo os dedos ásperos, tudo dói, sinto medo, meu peito dói.
O relógio
chama as 12 horas, ereto. O pau duro do dia, pronto pra gozar na minha cara
mais um resto de dia, que eu bebo em goles de cachaça, em tragos de cigarros
filados dos bêbados das padarias. Sinto fome, muita fome. Deixo meu corpo rolar
pra fora da cama seguindo um ritual até colocar a coluna no lugar. Chacoalho a
mão esquerda que dorme e sinto o sangue alfinetando as pontas dos meus dedos.
Sigo até a geladeira, no caminho tusso, tusso muito, um escarro preto percorre
o meu sistema respiratório trazendo um gosto putrefaço à minha boca, o gosto de
dentro, gosto de mim, gosto de alma inerte. Questiono porque comecei a fumar,
perco a fome por um segundo e encaro a geladeira de longe. Preciso comer
qualquer coisa, cuspo o resto da mistura de alcatrão e órgãos internos. Minhas
tripas roncam de novo, abro a porta da geladeira e vejo pedaços de mim ali
dentro, não tenho vontade de nada, mas o ronco reclama na boca do meu estomago
e me obriga a pegar uma caixa de leite que dorme na porta. Cheiro, parece estar
bom, bebo um gole para testar, não consigo conter a fome e bebo meia caixa do
leite que desce doendo, abrindo caminho pela garganta inflamada, seca,
escarrada. Me sinto todo fodido. O DVD continua tocando no menu, de novo e
outra vez.
Olho pra
estante do outro lado da sala, visão que tenho dali da geladeira mesmo. Meus
olhos embaçados não enxergam, mas sabem o que veem lá. A foto dela me encara,
ao lado de mais três porta-retratos, que sorriem. Lembro da casa cheia, lembro
de quando ainda enxergava o caminho, lembro de ter pedido pra ela não ir, sinto
uma dor forte no braço esquerdo, lembro de ter chorado, a dor toma conta de
mim, o leite cai, ela fecha a porta, as crianças choram, os vermes me comem, a
porta se abre, não há ninguém do outro lado, eu choro, meu peito chora, meus
joelhos doem ao acertar o chão, o caixão se fecha, os olhos encaram, as crianças
e ela não voltam, eu não volto, não posso, não consigo.
O leite molha a minha cara colada ao
chão, meu braço direito perde as forças e treme, minhas pernas procuram por
onde caminhar, a respiração enfraquece. Por que? Ela não volta, eu peço que
volte, eu pergunto a Deus onde ela está? Vou encontrá-la? Meus filhos, minha
família, aquele maldito trem, aquele trilho sem manutenção, ela fugia pra casa
da mãe dela porque eu bebia demais, eu choro, eu me lembro de tudo agora, eu
não quero ir embora, eu não quero que ela vá embora. Os vermes consomem o que
restou dos meus olhos, minhas tripas, eu inteiro espero alguém me encontrar ali
naquele chão, espero o leite começar a feder, espero a primeira pá de terra,
espero não voltar nunca mais, nunca mais.
Fecho os olhos, morro, acordo no
sofá. Acendo um cigarro, tenho sede. A cabeça dói. Os porta-retratos continuam
sorrindo e eu, sumindo.
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