segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Letras que são letras e não ousam ser números

Critério de análise de falhas segundo Coulomb. O quê? Coulomb. Quem? Aquele, mais um, que decidiu estudar a matemática e provavelmente ficou louco como todos os outros. Ou será que foi a física? Loucuras, somas, cálculos, retas. Tudo errado, tudo lógico e exato. Será? Acordo amanhã com tudo fresco na cabeça mas sem entender merda nenhuma do que realmente significam. São números apenas. Ou são letras que parecem números? Ou são números travestidos de letras? Quanto valem os "a's"? E os "b's"? Depende do problema. Ou mesmo da resolução. O seu tá igual ao meu? Não? Então fudeu! A prova é amanha e agora? Agora não adianta mais. As letras ainda não viraram números e eu aqui escrevendo minhas mágoas. Por quê não estou estudando? Não tenho vontade. Tenho vontade de escrever. Letras que são letras e não ousam ser números. Nem mesmo as palavras cujos significados se encontram no universo dos números. "Três", "Dez". São palavras, letras, antes de tudo. E só assim são bonitas e exatas. Não quando a-igual-a-b-menos-c-vezes-três-d e toda essa merda de iguadades inúteis. O meu problema definitivamente não é a matemática. São as letras que se somam, dividem, subtraem, multiplicam e resultam em números exatos e quadrados ao invés de belas palavras, inexatas, que me dizem mais sobre mim do que a porcaria do cálculo.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Uma homenagem a um escritor favorito. EraOdito?

AMOR CRISTÃO
Marcelino Freire


Amor é a mordida de um cachorro pitbull que levou a coxa da Laurinha e a bochecha do Felipe. Amor que não larga, na raça. Amor que pesa uma tonelada. Amor que deixa, como todo grande amor, a sua marca.

Amor é o tiro que deram no peito do filho da dona Madalena. E o peito do menino ficou parecendo uma flor. Até a polícia chegar e levar tudo embora. Demorou. Amor que mata. Amor que não tem pena.


Amor é você esconder a arma em um buquê de rosas. E oferecer ao primeiro que aparecer. De carro importado. De vidro fumê. Nada de beijo. Amor é dar um tiro no ente querido se ele tentar correr.


Amor é o bife acebolado que a minha mulher fez para aquele pentelho comer. Filhinho de papai, lá no cativeiro. Por mim, ele morria seco. Mas sabe como é. Coração de mãe não gosta de ver ninguém sofrer.


Amor é o que passa na televisão. Bomba no Iraque. Discussão de reconstrução. Pois é. Só o amor constrói. Edifícios. Condomínios fechados. E bancos. O amor invade. O amor é também o nosso plano de ocupação.


Amor que liberta, meu irmão. Amor que desce o morro. Amor que toma a praça. Amor que, de repente, nos assalta. Sem explicação. Amor salvador. Cristo mesmo quem nos ensinou. Se não houver sangue, meu filho, não é amor.

(ps.: já sinto falta do blog)

sábado, 11 de setembro de 2010

A umidade relativa do ar

-Não posso sair. - ela me disse. - Sou uma fugitiva. Todos estão atrás de mim. CIA, FBI, Scotland Yard e toda a polícia de londres. Terei que me esconder pra sempre.

-Mas estamos no Brasil, aqui você não corre mais riscos.

-Isso é o que você pensa! Eles são espertos e vão nos encontrar.

-O que você fez afinal?

-Não posso contar. Só tenho que ficar escondida. Vai me ajudar ou não?

-Depende. Eu tinha intenções de sair com você, mas depois disso acho que fica inviável. Afinal, não queremos ser pegos, não é mesmo?

Ela me olhou. Entendeu o ar de sarcasmo da frase. Sorriu e disse:

-Tolinho! Mas é isso mesmo, não queremos ser pegos.

-Tudo bem! Posso ficar com você por hoje pelo menos?

-Por hoje? Eu tinha pensando um pouco mais do que isso. - disse ela fazendo bico.

-É uma oferta tentadora, mas eu não corro risco de vida ficando com você?

-Corre, muitos, mas não acha que vale a pena?

-Realmente. Certa vez me disseram que a gente sempre corre riscos, com todo mundo, de ser magoado, deixado na mão ou, no seu caso, de ser pego e provavelmente morto.

-Não seja tão dramático. E foi eu quem te disse isso!

-Ah!

Realmente, havia sido ela e eu não me lembrava. Continuei:

-Que tipo e vilã é você afinal que não tem uma parceira de vilanices?

-Do tipo que tinha uma parceira, mas estava perigoso demais e precisamos nos separar.

-O que aconteceu?

-Nos separamos na última rodoviária. Ela foi pra algum lugar na Antártica e eu vim parar nessa pacata cidade no Brasil. Aliás, que clima ruim tem esse lugar ein! Apesar que de onde eu venho é bem pior. Sabia que a umidade relativa do ar no deserto chega a seis-por-cento, apenas?

-É, já ouvi falar.

Gostava da maneira inteligente que ela falava. Às vezes usava palavras difíceis pra mostrar o quanto era conhecedora do mundo das letras. Não sei se conhecia mesmo ou se usava como havia aprendido, mas como eu mesmo não conhecia o real significado daquelas palavras, aceitava tudo o que ela falava sem questionar. A postura e a certeza com que falava também me impressionavam. A linguagem corporal diz noventa-por-cento do que se quer falar. Pode-se dizer sim com o corpo, dizendo não com a voz. Aprendi com ela também, não por ela ter me falado, mas a observando somente.

-De onde eu venho as vezes bate oito! - ela continuou.

-Oito o que?

-Oito-por-cento. A umidade do ar.

-Poxa. Você mora perto de algum deserto?

Me olhou fazendo careta.

-Claro que não.

-Tudo bem. Me conte porque você e sua parceira de crime se separaram.

-Tocamos o terror por ai. Assustamos algumas criancinhas com nossas caras de más e tivemos que nos separar para os pais furiosos não nos encontrarem.

-Com essa cara ai, assustando criancinhas? Tudo bem, não quer contar não conte.

-Não se preocupe, não foi nada grave.

Ficamos em silêncio por alguns minutos. Ela às vezes ia à janela observar a rua. Afastava a perciana com os dedos e colava o olho no vidro. Fazia tudo aquilo parecer um filme.

-E nós? - perguntei.

-O que tem "nós"?

-O que estamos fazendo afinal?

-Nos escondendo.

-Não foi isso o que perguntei. Quero saber porque você se esconde do mundo, mas permite que eu esteja aqui com você?

-Eu gosto de você, eu acho.

-Eu também gosto de você, mas o que isso significa?

-Significa que tudo está como deveria estar.

-Assim mesmo, dois fugitivos? Não poderiamos estar por ai, andando de mãos dadas, como casais normais?

-Tudo tem seu tempo, bobinho. Além do que, não somos um casal ainda.

-Ainda?

-Foi o que eu disse, tudo tem seu tempo.

-Mas e se algo acontecer e você for pega? Ou se eu for pego?

-Você não está sendo procurado e se eu for pega, não será pra sempre. Você se preocupa demais.

-E você de menos.

-Foi o teu jeito de ser que me ensinou. Certas coisas são simples. O que é nosso é nosso e está guardado. Ninguém pode tirar de nós.

Fiquei em silêncio, com a respiração suspensa. Pensativo.

-Você... sempre dizendo a coisa certa, na hora certa. - conclui.

-Foi o que eu disse. Coisa certa, hora certa, lugar certo. Tudo exatamente como deveria estar.

Sorri.

-Agora vai até a geladeira e pega uma coisa que está la dentro. É uma surpresa pra você. Vai saber o que é quando abrir a porta.

Fui até a cozinha. Abri a geladeira e gritei com a cabeça la dentro.

-Você fez a sua torta pra mim! Finalmente!

Voltei à sala e a encontrei apoiada na janela, à meia luz do cair do dia. A cor do céu refletia na pele branca daquele rosto cheio de fibras presas ao músculo da face, que faziam buraquinhos bem característicos e perfeitos, ainda que assimétricos, naquele rosto que sorria, acentuando as marcas. Trocamos olhares envergonhados. Certos de que tudo realmente estava como deveria estar.

-Sim, fiz pra você. - ela respondeu.