domingo, 28 de fevereiro de 2010

o mesmo adeus

Eu disse a ela que acreditava em honestidade. Enquanto isso ela enchia meu copo, provavelmente como pretexto para encher o seu próprio. Na outra mão o cigarro, mais cênico do que vício, como tudo nela. Cada olhar e cada movimento pareciam tirados de algum seriado dos anos 50. Clichê e sem graça a esta altura do século XXI. Querida eu acredito em honestidade, repeti e ela fitando o meu copo cheio como quem perguntasse se eu não iria beber. Eu, enrolado em panos e panos tentando fugir do frio e ela me servindo de bebida gelada e amarga. É pra esquentar, meu caro, ela dizia e eu continuava tremendo. Ela, embriagada, não sentia mais o vento cortante e não via mais o meu rosto deformado pela desilusão. Imaginei ela fodendo com aqueles viciados por madrugadas a fio a troco de outra dose, de outro pico, de outro fumo. A cara se deformou mais. Ela continuava: você não pode se culpar por minhas escolhas... entenda que não sou mais uma criança... já passei por mais coisas que você nesta vida e a esta altura eu é que deveria estar cuidando desse seu rabo gordo de criança mimada.

Fingia que não ouvia pra não ter que pensar nisso depois, mas sabia que ela estava certa. A esta altura eu era chef de cozinha em um restaurante renomado e não sabia fazer mais nada além de experimentar molhos e cozinhar para os outros. Ela, minha irmã mais nova, viciada em todas as drogas imagináveis e inimagináveis, quase me convenceu de que a minha disciplina valeu menos do que a rebeldia dela na contagem final de pontos dessa vidinha sem sentido. Se querem bem saber, a mim ela convenceu. Paguei a conta enquanto ela me encarava, me rebaixando até mesmo por eu insistir em pagar a conta sabendo que ela não teria dinheiro e depois me despedi com um adeus triste de quem não volta nunca mais; o mesmo adeus que dou toda semana, até ela me ligar de novo dizendo que está na merda e que precisa de ajuda, repetindo todo o ciclo da minha vida nos últimos cinco ou dez anos, já não sei mais. Até hoje, não ouve uma vez que ela não me odiasse por eu ter tanta dó e compaixão. Ela me odeia por eu não conseguir odiá-la.

2 comentários:

  1. Ela me odiava por eu não conseguir odia-la me lembra um prólogo do John Fante. A situação era outra, mas a sensibilidade muito parecida :)

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  2. eu ADOREI esse texto.. sem mais..rs..

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