sábado, 12 de setembro de 2009

Casa Velha

Hoje fui à casa dela devolver um livro antigo que estava comigo há tempos. Algo de poesia ou qualquer coisa que soe inteligente. Acabou que nunca li. Acabou que acabou, vai entender.

Não sei se foi a mania "cult" dela ou a minha cultura "pop" que estragou tudo, só sei que algo se estragou no caminho e nenhum dos dois aguentou o cheiro. Me lembrei da viagem que fizemos a uma cidadezinha do interior. O cheiro insuportável de bosta na primeira fazenda nos fez sentir falta do ar poluído da cidade. Voltamos correndo ao nosso ninho do amor impestiar o ambiente com nosso próprio cheiro, como se o fedor alheio não fosse o suficiente. Dois corpos nus na cama comprada em vezes nessas lojas feitas para casais recentes. Duas bundas que se alternavam pela cama, pela escrivaninha também comprada em vezes e pela poltrona, presente de casamento de algum tio meu ou dela. Não tinha cabeça pra lembrar de quem era o tio naquela hora. E pensar que escrevi páginas e páginas de meu último livro naquela escrivaninha, cheia de coliformes fecais da bunda dela, ou da minha, não lembro mais.

Estava colado na porta quando ela se abriu e pude sentir que o cheiro característico ainda estava lá, mas não era o meu. Alguém esteve ali, mas preferi não saber mais detalhes sobre isso. Ela atendeu a porta dizendo que agora morava com alguém, uma amiga do interior que veio estudar na cidade e que eu não ligasse a bagunça. Lembrei novamente do cheiro de bosta da fazenda e depois da bunda dela na escrivaninha. Sim, era a bunda dela, me lembrei. Pensei com meus neurônios que a história da amiga era uma mentira e tanto e que aquela vaca, numa segunda visita ao campo, sentiu a minha falta e arrumou um filho de fazendeiro (e da puta) qualquer para salpicar a casa com mais coliformes. Talvez ela queira cruzar espécies - pensei.

Entrei no apartamento receoso, com medo de encontrar um macho dominante que me olhasse dos pés a cabeça e perguntasse "Quem é o macho alfa ai?" e eu, emudecido, ouviria a voz dela respondendo "Ninguém!". Ninguém? No final, ninguém mesmo. Mas dei de cara com a amiga, que saia de mochila atrasada para a aula. Esqueci a história do macho dominante e do filho de fazendeiro esmerdeando a casa, mas pensei na amiga dela fazendo isso por ali, nos móveis que eu comprei. Perguntei se podia me sentar na poltrona. "É sua, foi seu tio quem deu. Quer de volta?". É mesmo, foi meu tio quem deu - pensei - mas não a queria de volta. Pertencia àquele lugar. Olhei ao redor e vi "aquele lugar", lindo, que construí com parte do meu dinheiro e parte com o dinheiro dela e no fim ficou tudo pra ela. Nada mais justo, foi pra ela desde o começo.

Percebi que estava tomando tempo demais ali, sem necessidade. Só havia ido entregar um livro velho que ela me pediu. Mas eu não queria ir embora. A poltrona, a mesa, o sofá, a cama que pude ver pela porta entreaberta, os porta retratos agora com outras fotos e até mesmo a mancha do meu pé na parede, motivo de uma das maiores de nossas brigas, me fizeram sentir que estava em casa e não queria ir embora. Pedi água e ela foi buscar. Encarei a mancha de pé na parede. Que pé enorme eu tenho, ela tinha razão em brigar comigo, dá pra ver de longe. Maldito pé. Desejei não ter pés pra não ter tido aquela briga. Pensando bem, até mesmo as brigas foram legais. Alguns xingamentos para extravazar, alguns palavrões e pronto. Sexo no fim pra apaziguar. Sono. Dormir.

Ela chegou com a água. "Obrigado por trazer o livro. Você leu?". Bebi a água e respondi que não. Sinceridade não era exatamente uma constante no relacionamento então, já que não havia mais relacionamento, resolvi inovar e reforcei dizendo que não novamente. Ela sorriu e pude ver que apreciou o gesto sincero. Continuei sentado, encarando ela olhos-nos-olhos até ela dizer: "Bom, estou atrasada e...". Parou de falar quando me levantei. Caminhei até a porta observando tudo o que meu campo de visão permitia naquele apartamento. Que saudade. Que merda! Ela abriu a porta. Me virei e senti, quase instintivamente, que nos permitimos um beijo. Um único beijo. Talvez o último dos últimos beijos. Hesitei.

Dessa vez acho que acabou mesmo. E se eu não tivesse hesitado, como seria? E se... Deixa pra lá. No fim ela ficou com tudo. A cama, nosso ninho, a poltrona, meus coliformes fecais e minha escrivaninha, tudo. Até mesmo a poesia ela pediu de volta. Poesias que não li quando tive a chance.

2 comentários:

  1. Não existe separação sem dor,isso é um fato! sempre doi mesmo que a relação esteja suja.


    Gostei da forma como você ora leva essa realação ao olimpo e ora esfregava toda sua coisa humana!
    parabéns


    www.johnrmulo.blogspot.com

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  2. Nossa xu, esse texto ficou muito bom. Com um q de experiência nas palavras!

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